CARTA AO ATOR D.
Eugênio Barba[1]
Freqüentemente me
surpreende a ausência de seriedade em seu trabalho. Não é devido à falta de
concentração ou de boa vontade. É a expressão de suas atitudes.
Antes de tudo, tem-se a impressão de que suas ações não
são ditadas por uma convicção interior ou por uma necessidade que deixa sua
marca no exercício, na improvisação, na cena que você executa. Você pode estar
concentrado no seu trabalho, não estar se poupando, seus gestos podem,
tecnicamente, ser precisos e, no entanto, suas ações continuam sendo vazias.
Não acredito no que você está fazendo. O seu corpo só diz uma coisa: obedeço a
uma ordem dada de fora. Seus nervos, seu cérebro, sua coluna não estão
comprometidos, e, com uma atitude epidérmica, quer me fazer crer que cada ação
é vital para você. Você mesmo não percebe a importância do que quer fazer
partícipe os espectadores.
Então, como pode esperar
que o espectador fique preso por suas ações? Como você poderia, assim, afirmar
e fazer compreender que o teatro é o lugar onde as convenções e os obstáculos
sociais devem desaparecer, para deixar lugar a uma comunicação sincera e
absoluta? Você neste lugar representa a coletividade, com as humilhações que
passou, com seu cinismo que é autodefesa, e seu otimismo, que é a própria
irresponsabilidade, com seu sentimento de culpa e sua necessidade de amar, a
saudade do paraíso perdido, escondido no passado, na infância, no calor de um
ser que lhe fazia esquecer a angústia.
Todas as pessoas presentes
nesta sala ficariam sacudidas se você efetuasse, durante a representação, um
retorno a estas fontes, a este terreno comum da experiência individual, a esta
pátria que se esconde. Este é o laço que o une aos outros, o tesouro sepultado
no mais profundo do nosso ser, jamais descoberto, porque é nosso conforto,
porque dói ao tocá-lo.
A segunda tendência que
vejo em você é o temor de levar em consideração a seriedade deste trabalho:
sente uma espécie de necessidade de rir, de distrair-se, de comentar
humoristicamente o que você e seus companheiros fazem. É como se quisessem
fugir da responsabilidade que sente, inerente à sua profissão, e que consiste
em estabelecer uma relação e em assumir a responsabilidade do que revela. Você
tem medo da seriedade deste trabalho, da consciência de estar no limite do que
é permitido. Tem medo de que tudo aquilo que faz seja sinônimo de fanatismo, de
aborrecimento, de isolamento profissional. Porém, num mundo em que os homens
que nos rodeiam já não acreditam em mais nada ou pretendem acreditar para ficarem
tranqüilos, aquele que se afunda em si mesmo para enfrentar a sua condição, a
sua falta de certezas, a sua necessidade de vida espiritual, é tomado por um
fanático e por um ingênuo. Num mundo, cuja norma é o enganar, aquele que
procura "sua" verdade é tomado por hipócrita.
Deve aceitar que tudo no
que você acredita, no que você dá liberdade e forma no seu trabalho, pertence à
vida e merece respeito e proteção. Suas ações, na presença da coletividade dos
espectadores, devem estar carregadas da mesma força que a chama oculta na tenaz
incandescente, ou na voz da sarça ardente. Somente então, suas ações poderão
fermentar conseqüências imprevisíveis.
Enquanto Dullin jazia em
seu leito de morte, seu rosto se retorcia assumido as máscaras dos grandes
papéis que viveu: Smerdiakov, Volpone, RicardoIII. Não era só o homem Dullin
que morria, mas também o ator e todas as etapas de sua vida.
Se lhe pergunto por que
escolheu ser ator, me responderá: para expressar-me e realizar-me. Mas que
significa realizar-se? Quem se realiza? O gerente Hansen que vive uma
existência respeitável, sem inquietudes, nunca atormentado por estas perguntas
que ficam sem resposta? Ou o romântico Gauguim que, depois de romper com as
normas sociais, terminou sua existência na miséria e nas privações de uma pobre
aldeia polinésia, Noa-Noa, onde acreditava ter encontrado a liberdade perdida?
Numa época em que a fé religiosa é considerada como neurose, nos falta a medida
para julgar o êxito ou o fracasso de nossa vida.
Sejam quais foram as
motivações pessoais que o trouxeram ao teatro, agora que você exerce esta
profissão, você deve encontrar um sentido que vá além de sua pessoa, que o
confronte socialmente com os outros.
Somente nas catacumbas
pode-se preparar uma vida nova. Esse é o lugar de quem, em nossa época, procura
um compromisso espiritual se arriscando com as eternas perguntas sem respostas.
Isto pressupõe coragem: a maioria das pessoas não tem necessidade de nós. Seu
trabalho é uma forma de meditação social sobre si mesmo, sobre sua condição
humana numa sociedade e sobre os acontecimentos de nosso tempo que tocam o mais
profundo de si mesmo. Cada representação neste teatro precário, que se choca
contra o pragmatismo cotidiano, pode ser a última. E você deve considerá-la
como tal, como sua possibilidade de reencontrar-se, dirigindo aos outros a
prestação de contas de seus atos, seu testamento.
Se o fato de ser ator
significa tudo isto para você, então surgirá um outro teatro; uma outra
tradição, uma outra técnica. Uma nova relação se estabelecerá entre você e os
espectadores que à noite vêm vê-lo, porque necessitam de você.
[1] In: BARBA,
Eugênio. Além das Ilhas Flutuantes. São Paulo – Campinas: HUCITEC, 1991. (p. 29
– 31).